Já passaram mais de três meses desde que saiu dos cuidados intensivos onde foi parar no dia de Natal, com Covid-19, e Odete Álvaro ainda se cansa a falar. “Não é fácil, foi uma experiência muito dura”, diz-nos, antes mesmo de iniciarmos a nossa conversa, na sua casa em Oliveira do Hospital, e de partilhar com os oliveirenses o que viveu e sentiu durante os 25 dias de internamento na ala “mais temida” do Hospital dos Covões, o hospital para onde são encaminhados os doentes Covid-19.
Os primeiros sintomas chegaram nas vésperas do dia 25 de Dezembro. Mas na semana que antecedeu o Natal, o corpo foi dando cada vez mais sinais de cansaço, ao ponto de “se me sentasse já nada fazia com que me levantasse”, conta a doente ex covid.
A família, toda reunida para a habitual ceia natalícia, começou a estranhar, sobretudo porque “ela sempre foi uma pessoa muito ativa, fazia tudo, e começámos a achar estranho”, interrompe o marido, que viu, juntamente com os filhos, os sintomas da mãe a agravarem-se no dia de Natal. “No dia 25 já não me levantei e comecei a ter dificuldades em respirar”, relata, percebendo, nessa altura, que “só podia ser covid”.
Acionaram os meios de socorro e a entrada na Urgência Covid-19 dos Covões ainda se deu no próprio dia de Natal. “Vai ser um dia que vai ficar marcado para toda a vida”, diz, ainda emocionada, pronta a desenrolar a fita de um “filme” que não sabe onde e como começou. “Ainda hoje não sei onde me infetei, eu que era sempre tão cuidadosa, mas costuma-se dizer que no melhor pano cai a nódoa”, entende, tendo apenas uma certeza é que o vírus a atingiu “como nunca pensou na vida”.
“Quando entrei na urgência pensei que me davam uma medicação e vinha para casa, sentia-me mal, mas estive sempre consciente”, garante Odete Álvaro, que apesar do seu estado já bastante critico, não tinha noção da gravidade da situação. “Eu estava com os níveis de oxigénio muito baixos, e a médica veio falar comigo para me dizer que tinha de ficar internada uns dias, para ver a reação à medicação, mas ao outro dia já estava a passar-me para os cuidados intensivos”, conta, num relato que é comum a muitos pacientes covid. Tão depressa estão a falar, como no minuto seguinte pioram e ficam ligados às máquinas. “Lembro-me de me terem levado por uns corredores gélidos, e de o funcionário que me transportava na maca gritar “Covid, Covid” para ter a certeza que ninguém se aproximava” e “para não deixar rasto, havia uma funcionária da limpeza a desinfetar todo o percurso que a maca fazia até à unidade de cuidados intensivos”, impressiona a conhecida colaboradora da ARCIAL, em Oliveira do Hospital, onde trabalha com pessoas com deficiência profunda há cerca de 40 anos.
Nos cuidados intensivos passou seguramente os piores dias da sua vida. Foram dias de incerteza em que a fronteira entre a vida e a morte é sempre muito ténue. Odete Álvaro esteve só com ventilação não invasiva, não chegou a ser necessária ventilação mecânica, mas mesmo assim “qualquer movimento parecia uma coisa imensa. Acabamos por ter muitas dores e é impossível pensar em dormir, com o barulho das máquinas e as equipas estão sempre a acompanhar-nos”, refere. “Nunca estávamos sozinhos, as equipas são excecionais, são todos muito humanos, dão-nos muito apoio”, elogia, lembrando a atenção e o cuidado inexcedível que médicos, enfermeiros e auxiliares têm com o doente e que foi “fundamental” para a sua recuperação.
“A certa altura, eu deixei de comer, não conseguia, e parecia estar a desistir e um enfermeiro chegou ao pé de mim e disse que eu tinha de comer senão não iria sair dali, eles eram incansáveis, muito cuidadosos, muito queridos, eles também sofrem connosco, acho que ficam cansados de tanto fazer pelos doentes” conta a oliveirense, que esteve sempre consciente do que se estava a passar.
“Um dia acordei e o senhor da cama ao lado já não estava lá, mas nós não nos apercebemos de nada, eles são muito discretos a fazer as coisas”, repara, confessando que também a ela lhe passou “tudo pela cabeça”. “Fazemos muito filmes da nossa vida e há muitos se´s que nós colocamos” e o principal é mesmo se voltava a ficar boa para poder regressar a casa e abraçar a família.
A família que durante 25 dias apenas teve contacto através de videochamada, “Falávamos quase todos os dias, mas pouquinho porque ela cansava -se muito, meia dúzia de palavras e não conseguia mais”, relata o marido, que juntamente com os filhos viveram igualmente dias de grande angústia e sofrimento. O que mais impressionou a família é que “ninguém ficou infetado”,apesar de estarem todos juntos na consoada. Estiveram filhos, netos e só um irmão que veio passar essa noite a Oliveira do Hospital contraiu o vírus, tendo começado, dias mais tarde, também ele a ter sintomas, acabando por ser internado quase na mesma altura nos Covões.
“Passámos pela mesma enfermaria sem sabermos um do outro”, lembra Odete Álvaro, que como fez questão de frisar “sempre foi uma pessoa muito saudável, nunca estava doente e raramente tomava medicação” e “isto é um alerta às pessoas que pensam que a Covid-19 atinge apenas pessoas doentes”. “Eu quase nunca tomava medicamentos, era uma pessoa bastante ativa, e olhe de um dia para o outro desmorona-se uma casa”.
As marcas da doença são, de resto, ainda visíveis. Emagreceu vários quilos, cansa-se muito facilmente, o cabelo começou a rarear com a medicação, “enfim nunca pensei demorar tanto tempo a recuperar”, confessa a oliveirense que, apesar de tudo, se considera uma “feliz” por ter vencido esta batalha e de estar cá hoje para contar a sua história de sobrevivência a um vírus que não tem deixado ninguém indiferente.