Maria da Luz Madeira Antunes e o marido, António Campos Lencastre, gostariam que a história não se repetisse. Mas tal como há 70 anos, José Sebastião Antunes (pai de Maria da Luz) não hesitou em acolher dois meninos da Áustria, no pós segunda Guerra Mundial, também agora, o casal, ambos com mais de 80 anos, já se voluntariaram, em email enviado na semana passada para a Cáritas Diocesana de Coimbra para receberem, na sua casa, em Alvoco das Várzeas, refugiados vindos da Ucrânia.
“Estamos muito preocupados com o que se está a passar outra vez no centro da Europa, com mães e crianças a terem de fugir da guerra no seu país, e enviei um email para a Cáritas a disponibilizar-me para voltar a acolher uma família ( uma mãe com um ou dois filhos)”, conta-nos António Lencastre, recordando a “experiência feliz” de há 70 anos, quando o sogro não ficou indiferente ao enorme flagelo provocado pela segunda guerra mundial e decidiu acolher duas crianças austríacas, enquanto o país se reerguia da guerra. “Estávamos em 1950. Na altura, foi a Igreja Católica que fez o apelo”, exultando os católicos de todo o Mundo a protegerem “os seus irmãos mais pequeninos”, e “o meu sogro, como católico praticante que era, e amigo de ajudar toda a gente não hesitou em mandar vir duas crianças, acolhendo-os como se fossem seus filhos”.
Maria da Luz, a esposa, era também ela criança, tinha apenas 8 anos quando Inge e Filinger, uma menina com 8 anos e um rapaz de 9 anos de idade, se juntaram à família. Ainda hoje guarda bem vivas algumas memórias da passagem dos dois “irmãos” austríacos pela sua casa. “Para mim foi uma alegria, tinha sempre com quem brincar”, recorda Maria da Luz, que nasceu para dar vida e “luz” a uma família que estava mergulhada num luto “profundo” com a morte das suas duas irmãs, no espaço de oito dias, com sarampo.
Inge e Filinger foram sempre tratados “como filhos”, diz, recordando- se que quando chegaram “vinham só com a roupa que traziam no corpo e o pai foi-lhes logo comprar roupas novas para eles vestirem, eles adoraram estar cá” . Os meninos tratavam inclusivamente o pai e a mãe, Maria da Piedade do Amaral, por “papá” e “mamã”.
“Eram muito bem tratados aqui”, tanto mais que já nem queriam regressar ao seu país. “Lembro-me perfeitamente do menino agarrado ao pescoço do meu pai a gritar: “Áustria não, papá, Áustria não!”, conta, ainda comovida, ao mesmo tempo que faz o paralelo com o que se está de novo a viver com esta guerra, com milhares de mães e crianças a terem de abandonar as suas casas e o seu país.
“Aquelas crianças sofreram muito, passaram fome, frio e hoje infelizmente é o que estamos a viver outra vez”, observa António Lencastre, que apesar da idade avançada, não hesita em voltar a abrir a casa à ajuda aos deslocados. “Temos que ser solidários com quem está a sofrer, e tal como há 70 anos o meu sogro ajudou estas duas crianças, também nós nos dispomos a receber uma mãe com um ou dois filhos” afirma o engenheiro técnico agrário aposentado, que não pensava voltar a passar na sua vida por uma nova guerra no velho continente.
Durante os cerca de dois anos que permaneceram em Alvoco das Várzeas, no seio da família Madeira Antunes, Inge e Filinger correspondiam-se com os pais quase todas as semanas, pois não havia telefone, nem outros meios de comunicação mais “rápidos”. “Era um primo nosso, o primo António que ainda é vivo, que é um poliglota, que nos traduzia as cartas que recebíamos também amiúde da família na Áustria, mandavam sempre fotografias e nós mandávamos fotografias nossas com os meninos, e dava para ver que era gente boa”, revela ainda Maria da Luz Antunes, lamentando, entretanto, ter perdido o contacto com os austríacos. “Ainda nos correspondemos durante muito tempo (era o meu primo que escrevia as cartas) e eles queriam sempre que nós fossemos lá – eles viviam numa cidade industrial próxima de Viena- mas há mais de 30 anos que não sabemos nada deles, já procurámos na internet, mas não conseguimos nada” conta o casal, lembrando que houve ainda mais duas crianças (dois rapazes) acolhidas pela mesma família (tios de Maria da Luz) e que partilharam das mesmas vivências.
Uma das descendentes, Maria Carolina Mendes, habituou-se desde pequena a ouvir falar dos austríacos em sua casa, também em Alvoco das Várzeas. Memórias que a mãe guardava e que contava aos filhos com orgulho, pelo bem que fizeram aos meninos refugiados.
Com três filhos, mas já sem nenhum em casa, Maria Carolina Mendes também não hesita em afirmar que voltaria a acolher refugiados, se houver necessidade. “Agora só vivo aqui eu e o meu marido, os meus filhos estão os três fora, e de braços abertos era capaz de receber alguém que precisasse da minha ajuda”, garante Maria Carolina, que tem bem presente a passagem dos estrangeiros pela família.
“Tenho uma memória muito feliz desse tempo”, remata ainda, com saudade, Maria da Luz Antunes, que não gostaria de repetir a “experiência” pelos mesmos motivos de há 70 anos, mas que, tal como o pai e a mãe, em 1950, também agora não fica indiferente perante o que lhe é dado ver através dos meios de comunicação social e que é “uma coisa horrível”, diz.
A passagem de crianças austríacas por famílias de acolhimento portuguesas, entre 1947 e 1958, foi de resto o tema da tese de doutoramento de uma investigadora da Faculdade de Línguas da Universidade de Porto, Ana Pinho, que compilou esta e outras histórias “felizes” no livro “Crianças Cáritas entre a Áustria e Portugal”, numa edição que contou com o apoio do CITEM ( Centro de Investigação Transdisciplinar) e da Câmara Municipal do Porto.