O governo foi de bicicleta contra um vidro. E, cheio de impulsividade, o ministro acabou por arremessar ao SIS uma mochila bem difícil de carregar.
Na última crónica que assinei no Folha do Centro lamentei a sucessão de episódios na Comissão Parlamentar de Inquérito da TAP. Voltei a provar um dos meus piores defeitos: sou incapaz de prever o pior. E estava realmente longe de imaginar o que estava aí por vir.
O governo foi de bicicleta contra um vidro. E, cheio de impulsividade, o ministro acabou por arremessar ao SIS uma mochila bem difícil de carregar. Infelizmente, e mesmo estando perante tudo isto, não nos podemos fechar na casa de banho até passar.
Noutras cenas, o Presidente da República, o garante de instabilidade, intriga e drama da nossa democracia, acabou por ser apanhado em contrapé por uma realidade mais afiada do que os seus habituais dramas palacianos, o que usou como pretexto para, daqui para a frente, ser ainda mais desleal na sua relação com o Governo. Não nos enganemos – a relação de codependência que serviu a Costa, serviu também a Marcelo, nomeadamente como argumento eleitoral, mas foi sempre uma relação de interesse, pautada por vários momentos de incontinência mediática lamentáveis e que, perdoados um a seguir aos outros, acabaram por desembocar onde nos encontramos agora.
Ultrapassados os episódios lamentáveis e, parece-me a mim, assumindo que a partir de agora vamos continuar a viver nesta espécie de turbulência tensa constante, é melhor não nos distrairmos, porque há muito por fazer, a começar pelo Governo e a acabar em nós.
O país, em particular as grandes cidades, continuam com um problema grave por resolver no acesso à habitação e as medidas do “Mais Habitação”, concordemos mais ou menos com elas, têm de ir para o terreno e sair do plano das intenções. Continuarmos parados é que não pode ser.
A inflação continua a asfixiar as famílias e a medida de redução do IVA nos bens essenciais, que gerou poupança no “cabaz alimentar” não pode ser um fim em si mesma. Mais do que aliviar o garrote, é preciso continuar um caminho de valorização salarial, que tem de ser incentivado pelo Estado, mas também prosseguido pelos privados, em particular por aqueles que nestes primeiros meses do ano têm brindado os acionistas com lucros recorde.
A chaga da emigração dos jovens mais qualificados e a falta de esperança num futuro melhor em Portugal combate-se com melhores salários, mais condições laborais, melhor conciliação entre a vida pessoal e profissional. E essa é uma questão de mentalidade que tem de mudar no nosso país e que, passando pelo Estado, passa sobretudo por cada um de nós e pela exigência que temos de ter. Não são luxos, é justiça social.
Nos primeiros três meses do ano, Portugal teve o crescimento mais rápido da Europa, mas o PIB não põe pão na mesa das pessoas. É importante que o crescimento da economia corresponda, também, à distribuição justa de rendimentos. E a investimento público em áreas tão fulcrais como os transportes públicos e rede viária, a educação e o ensino superior ou a saúde pública.
As últimas semanas têm sido particularmente agressivas (e desmotivantes) para quem gosta de discutir o futuro baseado em perspetivas de longo prazo, e pensar em políticas públicas de qualidade. Termos protagonistas políticos, comentadores e eleitores que passam a vida a discutir a polémica do dia impede-nos de respirar fundo e perceber que temos de ir mais longe. Mas temos. E evitar cair em armadilhas, sejam elas narrativas ou literais.
Pedro Miguel Coelho
Jornalista do “Expresso”