Portugal tem sido considerado, repetidamente, um dos melhores destinos para nómadas digitais. Nómadas digitais são pessoas que, trabalhando para uma empresa ou como profissionais independentes, podem fazê-lo remotamente, em teletrabalho, não precisando de continuar a viver no seu país de origem ou onde se situa a sede da entidade empregadora, no caso dela existir.
Nómadas digitais pagam menos impostos?
O governo português, tentando posicionar-se como um destino de residência para estas pessoas, optou por dar-lhes um regime fiscal mais vantajoso. Enquadrado na situação de residente não-habitual, um “nómada digital” que venha para o nosso país pagará uma taxa fixa de IRS de 20% (ou menos, em alguns casos), independentemente dos seus rendimentos anuais. Para os trabalhadores nacionais – estejam eles em teletrabalho ou não, estejam eles em Lisboa, no Porto, ou no Interior – a taxa de IRS, progressiva, pode ir até aos 48%.
Para aceder a este regime, disponível para aqueles que são considerados residentes não-habituais (RNH) é necessário não ter sido residente fiscal em Portugal nos cinco anos anteriores e exercer uma das atividades de elevado valor acrescentado que consta da portaria publicada pelo Ministério das Finanças. Cumprindo os critérios, pode beneficiar-se deste estatuto de RNH durante 10 anos.
Há um visto especial para os nómadas digitais?
Ao já vantajoso regime fiscal junta-se agora um novo visto de residência, intitulado “Visto de estada temporária e de autorização de residência para nómadas digitais”. O documento, que é apenas atribuído a trabalhadores que recebam mais do que quatro salários mínimos nacionais, o equivalente a 2820 euros brutos, permitirá a estes cidadãos não-nacionais residirem no nosso país.
O argumento mais forte para esta decisão política é a atração de populações e o ropovoamento do país, que se vê a braços com uma crise demográfica. Além disso, ao atrair estes trabalhadores poderá reforçar o balão de oxigénio da Segurança Social, que muito agradecerá receber as suas contribuições. Percebida a linha argumentativa, passo a explicar porque é que sou obrigado a discordar dela de forma clara.
- Ao criar um visto de residência para os nómadas digitais apenas com rendimento superior a 2820 euros brutos, estão a ser convidadas para o nosso país pessoas com um salário que é mais de duas vezes superior ao salário médio português. Esta opção contribui para acentuar ainda mais o desequilíbrio do mercado, e o agravamento dos preços dos serviços, em particular em setores vitais como o da habitação – as rendas e valores de venda milionários que já são cobrados, sobretudo nos grandes centros, poderão subir ainda mais, estimulados pela chegada destes novos residentes, que podem pagar mais caro. Esta situação contribuirá para que se continue a excluir o trabalhador médio e a empurrá-lo para situações de habitação cada vez mais precárias, de pior qualidade e que o obrigam a maiores deslocações.
- Ao optar por manter um regime tributário, para os residentes não-habituais, que se aplica de forma geral a todos os cidadãos nesta situação, e não prevê qualquer mecanismo de discriminação positiva, não beneficia de nenhuma forma quem opte por viver em zonas de baixa densidade, e vai contribuir para agravar os problemas nacionais de coesão territorial, desigualdade na distribuição de riqueza e a sobrepopulação das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, ao invés de incentivar o repovoamento das zonas que efetivamente poderiam beneficiar dele.
- Portugal oferece vistos de residência para nómadas digitais, e um regime fiscal de exceção para estes trabalhadores, enquanto continua a ver uma parte da sua população a optar por emigrar, devido aos baixos salários e às fracas condições laborais e sociais. Não deveriam direcionar-se os benefícios também para quem aqui trabalha e sempre trabalhou? Podemos e devemos querer atrair população estrangeira e qualificada, como já várias vezes aqui referi, mas não podemos criar uma situação em que os próprios cidadãos nacionais são cidadãos de segunda.
A este propósito, deixo dados para pensar: Relativamente aos rendimentos de 2022, um trabalhador português com um salário bruto de 2820 euros mensais, ou seja, alguém que, caso tivesse tido a sorte de agora vir de outro país, teria direito ao visto de residência e ao regime de residente não-habitual, mas que como cá está não terá, pagará de IRS 11.718 euros. Na mesma situação, e aplicando uma taxa fixa de IRS de 20%, um RNH pagará 7.896. E isto caso não se enquadre nas exceções previstas na lei, e que podem reduzir o imposto para 10% ou mesmo 0%. Será isto justo?
Recentemente, a 9 de outubro, o Expresso registou o seguinte: “no segundo trimestre deste ano chegaram ao Porto 10.800 nómadas digitais, um novo máximo, que corresponde a uma média de 3.600 chegadas por mês”. Menos de um mês antes, o Público tinha dado conta de outro dado preocupante: “os proprietários retiraram do mercado 80% dos quartos para estudantes, virando a oferta para turistas e nómadas digitais e encarecendo o alojamento estudantil privado em 10%”.
Nos últimos meses, temos ouvido dezenas de histórias de estudantes que após terem conseguido chegar ao Ensino Superior, e ser colocados nas instituições que queriam, se veem depois obrigados a desistir, por não conseguirem pagar as despesas inerentes à frequência das Universidades e Politécnicos, em particular as rendas exorbitantes. Queremos excluir os sonhos de quem quer crescer e formar-se no nosso país?
Todos sabemos também quantos jovens (e menos jovens) se mantêm em situações precárias de habitação, nas maiores cidades do país, a partilhar casa, e sem capacidade para comprar ou alugar habitação própria, enquanto adiam o sonho de constituir família ou ter uma vida estável. Não queremos que estas pessoas façam a sua vida em Portugal? Não faria sentido criar condições para que os portugueses pudessem também formar as suas famílias e, consequentemente, contribuírem para a repovoação?
Queremos fazer de Portugal um país bom para viver… se formos ricos e estrangeiros? O local bonito, com praia, sol e cafezinhos simpáticos para retiros mais ou menos espirituais de meninos ricos? Não me parece que mereçamos uma ambição tão pífia.
Pedro Miguel Coelho
Jornalista do “Expresso”