Cobrar 450 euros por um quarto, dentro de uma casa partilhada com outras pessoas, um valor que corresponde a mais de 60% do salário mínimo nacional, já é imoral ou está muito próximo disso. Fazê-lo a uma estudante que dependerá dos rendimentos dos pais, ou das parcas quantias que consiga obter com trabalho a tempo parcial, torna-se ainda mais perverso.
No fim do mês passado, ao percorrer as redes sociais, encontrei mais um caso absurdo entre as centenas que todos os dias se reproduzem, perante a difícil tentativa de acesso à habitação por parte dos milhares de jovens que, para prosseguirem estudos no Ensino Superior, têm de arranjar um sítio onde viver nas maiores cidades do nosso país.
Na resposta enviada a uma jovem que a contactou para arrendar um quarto, a senhoria respondia que tinha várias pessoas interessadas naquele espaço e que, por isso, iria fazer um leilão no dia seguinte, a partir do meio-dia, com uma licitação base de 450 euros mensais.
Por onde começar? Cobrar 450 euros por um quarto, dentro de uma casa partilhada com outras pessoas, um valor que corresponde a mais de 60% do salário mínimo nacional, já é imoral ou está muito próximo disso. Fazê-lo a uma estudante que dependerá dos rendimentos dos pais, ou das parcas quantias que consiga obter com trabalho a tempo parcial, torna-se ainda mais perverso.
No entanto, não estamos a falar só de 450 euros (só!?). Estamos a falar de um leilão que começa nos 450 euros. Este leilão é a figura de estilo perfeita para o que se está a passar no mercado de arrendamento em Portugal: perante uma procura desenfreada e uma situação desregulada, tudo é um leilão.
“Quer comprar casa? Desculpe, mas temos este casal americano que paga o dobro do que os senhores e dizem que para eles até é barato. Quer arrendar um quarto? Temos aqui este anexo sem janelas a 500 euros por mês mais despesas. Se quiser mais barato temos um quarto com dois beliches onde alugamos camas a 350 euros por mês.”
Por mais ridículo que possa parecer, tudo o que aqui está descrito corresponde a casos reais. É preciso regular o mercado – sim, limitar a proliferação do alojamento local, sim, construir um parque público de habitação, sim, estabelecer legislação que evite a especulação imobiliária. Como acontece em muitos outros países na Europa sem que qualquer suspeita de comunismo paire sobre eles.
Mas hoje não venho aqui para falar do que o papá Estado nos pode permitir ou proibir. Gosto de lidar com as pessoas adultas como elas sendo adultas e, por isso, responsáveis pelas suas decisões e pelas consequências delas.
Quando um senhorio, seja ele quem for, decide fazer um leilão ou cobrar preços pornograficamente altos por quartos, não tem nenhuma arma apontada à cabeça para o fazer. É uma opção que faz, em nome do lucro. E, como é natural, ninguém pede que quem fez um investimento em imobiliário, tenha prejuízo com esse investimento. O que se pede é que estas pessoas tenham duas coisas cujo stock aparentemente reduziu dramaticamente nos últimos tempos: noção e decência.
A noção de que é possível lucrar sem o fazer à custa da exploração abjeta das necessidades dos outros, sobretudo uma necessidade básica como a habitação. É possível lucrar 20 em vez de lucrar 200. A solidariedade e a responsabilidade social não estão só reservadas ao Estado, às empresas ou aos poucos dias do ano em que há peditório do Banco Alimentar. Podemos ser solidários e responsáveis perante os outros durante todo o ano.
A decência de perceber que, aquelas pessoas que estão sem casa, desesperadas para conseguir encontrar um lugar onde ficar, para poderem continuar a estudar, ou simplesmente para poderem viver a menos de uma hora do seu local de trabalho, podiam ser cada um de nós. A empatia de ser capaz de se pôr no lugar dos outros, e pensar “e se fosse eu nesta situação?”.
Falta legislação, sobretudo quando se percebe, com todos os dados óbvios que estão à nossa volta, que o mercado não se vai regular sozinho. E os passos dados pelo Governo têm sido tímidos neste sentido. Mas não, não há legislação que substitua uma ética de vida em comunidade que se paute pela generosidade, pela partilha, pelo cuidado com o outro.
Como é que, sem nos apercebermos, tanta gente que nos rodeia meteu na cabeça que o que conta é a lei do mais forte, doa a quem doer, custe o que custar?
Pedro Miguel Coelho
Jornalista do “Expresso”