António Costa tinha de sair. O governo que lidera cai por não ter sido capaz de se renovar e corrigir vícios. A maioria absoluta, o prémio de confiança que os portugueses lhe atribuíram, desbaratada por incapacidade de entender que as soluções se esgotam, e que ou se fazem renovações a tempo, ou as instituições caem de maduras.
Em poucas linhas, um famigerado parágrafo de uma nota de imprensa da Procuradoria-Geral da República, com uma escrita que não parece a de alguém que seja profissional no uso da língua portuguesa, ditou o fim de oito anos de governo. Sabemos hoje que foi incluída pela própria Procuradora-Geral da República, como escreve o Expresso desta sexta (17 de novembro).
Reza assim: “No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”.
É esta referência, e a suspeição que abre, até agora não clarificada ou quantificada, que abre a porta a que António Costa abandone o cargo de chefe de governo. Para os devidos efeitos aqui declaro que acho que o primeiro-ministro agora demissionário não tinha outra hipótese a não ser a demissão. Este parágrafo traduziu-se, contudo, uma escapatória e uma saída limpa.
É, na verdade, a fuga perfeita para que Costa não tenha de se demitir por ter permitido que, à sua volta, estivessem o “melhor amigo” facilitador de negócios, ou o chefe de gabinete que achava normal ter 75.800 euros no escritório de trabalho. Fica aqui a nota, no meio de todo o ruído causado pelo Ministério Público, que é embaraçoso que os mesmos procuradores que se tenham apressado a divulgar à imprensa que este dinheiro foi encontrado, não tenham conseguido associá-los a nenhuma prática criminosa.
Ficam, mais uma vez as dúvidas sobre o respeito dos próprios procuradores pela justiça, pela presunção de inocência ou pelo direito à defesa. Dúvidas essas que não deviam existir e que devem preocupar qualquer cidadão honesto: e se um dia fosse com alguém que nos é próximo, ou mesmo connosco?
Visto de fora, tudo isto nos dá a entender que estas fugas de informação selecionadas mais não querem do que, na impossibilidade de conseguir condenações em tribunal, caucionar um julgamento em praça pública assente na descredibilização e ridicularização dos arguidos do processo, alheio ao mérito do caso que o MP tem.
Apesar de tudo isto, sou da opinião que António Costa tinha de sair. O governo que lidera cai por não ter sido capaz de se renovar e corrigir vícios. A maioria absoluta, o prémio de confiança que os portugueses lhe atribuíram, desbaratada por incapacidade de entender que as soluções se esgotam, e que ou se fazem renovações a tempo, ou as instituições caem de maduras.
António Costa sai, contudo, com uma grande parte do seu capital político preservado, e com tempo para que a justiça funcione e possa fazer o que quiser depois disso. É por isso que o parágrafo que o faz demitir-se é também o parágrafo que o salva.
Dito isto, nada indica até ao momento que o Ministério Público tenha um grande caso e, até agora, além de o juiz de instrução ter deixado cair os crimes de corrupção e prevaricação, têm se colecionado momentos absolutamente insólitos: um erro de transcrição que trocou o nome do primeiro-ministro pelo do ministro da Economia, uma portaria que alegadamente tinha sido “encomendada” pela Smart Campus mas que afinal nada tinha a ver com o negócio da empresa e, para corolário, uma reunião na sede do PS que nunca existiu. E isto tudo mesmo tendo existido escutas e vigias durante meses.
Temo que, nos próximos meses, continuem a cair na comunicação social as transcrições, os autos, e que as fontes judiciais deixem correr muita água. Se assim for, vamos ter tempos negros pela frente, em que esta instituição, essencial no nosso sistema judicial, vai continuar a jogar como peão da luta político-partidária, deixando fugir dados, cuidadosamente selecionados, para incendiar a opinião pública e manter aceso um processo que, quando chegar aos tribunais, já terá sido substituído por uma qualquer outra polémica.
Pelo meio, caiu um governo e, ou muito me engano, na Procuradoria-Geral da República ficará tudo igual. A colecionar mais um megaprocesso para a sequência daquelas operações com nomes sonantes a que já estamos habituados, que não dão em nada, e só provam incompetência de quem devia defender o Estado ao investigar o crime. Pelo caminho, e depois de semeados estes ventos, vamos colher ingovernabilidade e caos.
Pedro Miguel Coelho
Jornalista do “Expresso”