Malaquias tem o hábito soez de fumar onde não deve. Gosta de piriscar no canto apertado dum snak, no átrio esconso duma igreja, na discreta retrete dum hospital. Tudo lhe serve. Paladino da transgressão, arma broncas por dá cá aquela palha. Um dia destes ainda lhe esmurram a narigueta, que a tem grande e bem pomposa como um chouriço de Minde. Em tarde de sol carregado, tal como hoje, dava pra espreguiçar á sombra de tal mastodonte. Fora isso, Malaquias é um porreiraço dos quatro costados, um amigão daqueles que nenhum bom “vivant” não desdenharia de ter. Na plenitude dos seus recursos, bota sentença de cátedra em muitas e variadas matérias. Corriqueiras para uns, que pensam que tais baboseiras não passam de lugares comuns duma filosofia barata, são, no entanto, para outros, os que têm da vida o sentido de humor dos profetas e o saber contido dos sábios, o supra sumo da clarividência.
Uma das pastas em que o seu curriculum mais se nota, aquela que mais colorida se nos apresenta, é, sem sombra de desacordo, o antes e o depois de uma jogatana entre os “grandes” do futebol luso. Esta semana, então, foram tantas as tropelias, que nem dá pra respirar, tão quentes e tão boas (como as castanhas do fado de Carlos do Carmo), a “saltar cinzentas na brasa”.
A abrir, aquela coisa do penalti no Bonfim, que não foi mas contou. A derrocada dos leões, anunciada aos quatro ventos, fez subir milhões de decibéis na acalorada discussão que daí se gerou. Malaquias não esconde a sua dedicação pelo Sporting Clube de Portugal, o que é irrelevante no contexto atual (não são “3 vírgula 5 milhões” deles espalhados por aí?), mas isso não o impede de ter um discurso frontal, desempoeirado, incisivo até dizer chega.
Argumentou Malaquias sobre esse momento de “desvairo” do penalti no Bonfim:
«Pois, o senhor árbitro de um desporto que envolve tanto dinheiro e tanta paixão, lá se ficou pela gente do costume, que protege e promove os homens do apito. Cabala ou não, o certo é que já lá vão quase duas décadas sem paparmos nada de jeito, uns restitos aqui e ali, coisa de pouca monta, mais de pedinte que outra coisa, e isso deve-se ao Sistema, sem qualquer dúvida. Um Sistema que engordou no norte e agora virou a gulodice para sul, prá catedral das bolas paradas. Nem o Papa milagreiro, enfronhado à décadas no submundo do futebol, com toda a sua malandrice, arranja antídoto para tantas habilidades e falcatruas. Olhem que é obra!»
Sorriu, virou a beata para o outro lado da bochecha, e vai disto:
«Em abono da verdade, há que dizê-lo, os nossos rivais da Segunda Circular pressionam que se farta os adversários, tal como nós fazíamos o ano passado, lembram-se?. Metem um ou dois golitos na primeira parte, dão tudo o que têm nesse período e depois fecham-se lá atrás.»
Respirou fundo, pigarreou:
«Há mérito próprio dos nossos rivais, sem dúvida, mas também muito mérito alheio, o tal “dois em um”. Quando um falha salta o outro, pois os árbitros também são gente, e gente tem de fazer pela vidinha. Estão no topo, e isso não é apenas por obra e graça do Espírito Santo. Certo! Mas, com tantos pontos de avanço?… »
Como quem fala assim não é gago, e a gaguez não é um defeito por aí além, era bom ouvir quem tem ideias diferentes das expostas, opiniões contraditórias de quem fala menos e mais devagar. E aí o caldo entornou-se. Entraram em cena não só os gagos mas todos os grandes palradores da velha guarda, que não só falavam alto e grosso como também não deixavam falar mais ninguém, escudados que estavam nos dez milhões de apoiantes que por aí andam, uns nos perdidos, outros nos achados. Acabou por não se entender patavina de tal contraditório, com alusões descuidadas a um passado já distante, dos 5 violinos e do regime da ditadura, do Calabote e do golo do Albano, da pistola do Góis Mota no peito do árbitro num jogo na Tapadinha (ou foi nas Salésias?).
Mas, Malaquias não é só isto, um vistoso galarim a discutir lances pela posse de uma bola jogada com os pés. Ele é um homem multifacetado, que se interessa pelas questões da comunidade a todos os níveis. Umas vezes assim, outras vezes assado, não perde pitada pra botar palavra. Irrompe por aí adentro, restaurantes, cafés, botequins, com o mesmo voluntarismo de um toureiro na Monumental de Cartagena a lidar o touro. Dá mais uma volta, remoe a nicotina dos lábios, e acrescenta:
«Vocês já viram o quanto de notável tem este concelho de Oliveira? Obteve o terceiro lugar entre todos os municípios do distrito de Coimbra, no desempenho financeiro das autarquias; possui um dos mais belos Mega Presépios até hoje vistos, aqui pertinho, em S Paio de Gramaços, e tem, ainda, um dos naipes mais aprumados e sabedores de jogadores de sueca, que dá cartas em qualquer mesa, estejam elas em Tábua, em Nogueira ou em Lagares».
Soavam os sinos para os lados do Jardim Central. Na Praça Grande, o vetusto café da esquina antiga, toda em blocos de granito envelhecido, agora em restauro, regurgitava de gente sem pressa. Os Antónios, os Carlos, os Eugénios e outros que tais liam as últimas, os mais idosos mergulhados em conversas de outros tempos, lembrando memórias perdidas. Cá fora, os mais jovens iam e vinham em passo apressado, mourejando sebentas e soletrando janeiras. Palpitavam novas esperanças nos corações ao ar puro da manhã neste começo de 2017, num inverno tão suave como dias singulares de primavera.
Sabe bem andar por cá, ter amigos para sempre, um béu-béu companheirão e uma praia fluvial em Avô que foi eleita, vejam só, praia do ano, aquela praia que apresentou maior e melhor acessibilidade em todo o Portugal.
E lá dizia Malaquias aos críticos do costume:
«Quem não está bem que se mude!».
Paes Mendes